8ª Bienal
De Corpo a Corpo, o Gesto no Tempo
Maio de 1912, Théatre du Chatêlet, Paris. A obra L'Après Midi d'un Faune do bailarino e coreógrafo russo Vaslav Nijinky é apresentada pela primeira vez.
1987. A canadense Marie Chouinard cria e interpreta uma versão de L’Après Midi d’un Faune inspirada nos registros que restaram da obra original de Nijinsky.
1994, Festival Internacional de Taipei. Este solo é transmitido pela coreógrafa a uma bailarina e reapresentado, dessa vez com a música original de Debussy, com o título de Prélude à l’Après Midi d’un Faune.
Agosto de 2010, sala de ensaios de uma companhia de dança em São Paulo. Um bailarino brasileiro que havia interpretado a obra em questão a transmite a uma bailarina argentina.
Outubro de 2011, Theatro José de Alencar. A 8ª Bienal Internacional de Dança do Ceará apresenta Prélude à l’Après Midi d’un Faune, de Marie Chouinard.
Ao longo de quase um século que nos separa da estréia de L'Après Midi d'un Faune, reverberações desse acontecimento continuam se propagando no tempo e no espaço, marcando corpos e imaginários, habitando de forma intensa a constelação de imagens e referências que atravessam o campo da dança. A releitura em questão, criada e inicialmente dançada por uma coreógrafa canadense, posteriormente interpretada por outros bailarinos, segue seu percurso. Transmitido de um artista a outro, reescrito de corpo a corpo: o gesto dançado.
Assim como a obra de Nijinsky, uma quantidade significativa de criações, antigas ou recentes, vem seguindo, das mais variadas formas, distintas trajetórias, atravessando o tempo e virtualizando passados passíveis de atualizações. Forjadas em diferentes épocas, essas obras constituem-se como repertórios coreográficos e podem ser percebidas como configurações gestadas e elaboradas pelos/nos corpos dançantes que lhes deram origem; como registros que compreendem em si indícios de tempos, espaços, afetos, saberes, crenças, histórias; inventários capazes de comportar não somente indícios de corporeidades e subjetividades singulares, mas também rastros do espírito do seu tempo.
Entrar em contato com aquilo que há de marcante em meio a esses acervos coreográficos, seja para o público ou para os profissionais da dança, implica em poder acessar um universo povoado de gestos artísticos, constituído e constituinte de corporeidades e subjetividades produtoras de dança. É uma maneira de se conectar a parte do que a dança produziu não só como manifestação artística, mas como forma de pensamento e saberes. Confrontar-se com repertórios pode ser uma oportunidade para (re)construir olhares e dar novos sentidos para a dança.
O lugar dos repertórios, no entanto, não se evidencia como algo consensual nos contextos de produção, difusão e formação em dança contemporânea. Fatores de ordem econômica, mercadológica, artística, pedagógica, para citar alguns exemplos, parecem concorrer para a contração do espaço destinado à manutenção, à circulação, ao registro e ao estudo de obras de repertórios. A falta de recursos, o modus operandi dos grupos, a natureza dos editais, a priorização da novidade, a tônica nas dinâmicas dos processos criativos em detrimento das obras, o desvencilhamento de elementos que eventualmente remetam a algo dado a priori... muitos são os aspectos que, de uma forma ou de outra, contribuem para um certo distanciamento em relação aos repertórios, sejam estes contemporâneos ou não.
Tocar a questão dos repertórios nos possibilita pensar nos modos de transmissão em dança, pois é a partir desse ato que se possibilita a atualização de algo que, por existir sobretudo como memória e/ou registro, encontra-se em estado de potência. Comportando diversas possibilidades de abordagem, o ato da transmissão parece tornar-se ele mesmo um gesto no percurso de uma obra de repertório. Oscilando na linha tênue entre a fidelidade e a traição, a transmissão de uma obra coreográfica compreende distintas formas de referência às suas origens e os termos utilizados para designá-las são igualmente múltiplos: remontagem, reescritura, releitura, recriação, transcriação... Mais do que propor-se a definir o que essa terminologia representa, interessa-nos problematizar o ato da transmissão como a ação que permite ao gesto dançado reinventar-se no tempo.
Com o desejo de expandir essa discussão, a 8ª Bienal Internacional de Dança do Ceará propõe uma série de ações em torno das questões aqui expostas. A programação de espetáculos conta com a presença de artistas conceituados do Brasil e do exterior, muitos deles se apresentando pela primeira vez na Bienal. Indagando sobre o que as remontagens e o transcorrer do tempo podem potencializar na percepção de uma obra, a curadoria apresenta trabalhos que ao longo dos últimos anos se mantiveram no repertório de algumas companhias, bem como obras que foram recentemente reencenadas com novos elencos. Mostra ainda uma leva de produções atuais, algumas delas pautadas nas trajetórias pessoais de artistas da dança, evidenciando em gestos e palavras os indícios desses percursos. Além das produções cearenses e nacionais, a programação exibe trabalhos da Argentina, Noruega, França e Israel.
2011, ano em que a Bienal completa 15 anos de existência, marca também o fortalecimento de suas parcerias institucionais. Saudando a criação dos cursos de graduação em dança da Universidade Federal do Ceará – UFC, as atividades formativas da Escola Pública de Dança da Vila das Artes, a ampliação da programação em colaboração com o Centro Cultural Banco do Nordeste – CCBNB, a inserção da dança na programação do Festival Ponto.CE, a realização da Bienal Estação Criança pela Secultfor, a Bienal de Dança soma seus esforços a essas iniciativas para potencializar o alcance das ações e a abrangência de públicos.
Em parceria com os recém-inaugurados cursos de Licenciatura e Bacharelado em Dança da UFC, será lançada a primeira edição do Colóquios em Dança, cuja temática é carne da memória da carne: repertórios, subjetividades, corporeidades. Dois ateliês de remontagens de obras coreográficas complementam as ações com foco específico na transmissão de repertórios. Além dessas atividades, uma residência, em parceria com a Escola de Dança da Vila das Artes, investe no compartilhamento de motivações estéticas e procedimentos de criação. Nessa ação, que congrega bailarinos do Ceará e da Argentina, o intercâmbio entre países do hemisfério sul se materializa como uma das prioridades da Bienal. A esse grupo somam-se artistas da Itália, Noruega, França, Índia e Chile.
O CirculaDança adquire uma dimensão inédita no contexto da Bienal, atingindo 10 cidades do Ceará, além de uma vasta programação em Fortaleza. Boa parte das apresentações é realizada em parceria com o CCBNB, evidenciando a forte sinergia que pode resultar da associação entre instituições que acreditam e investem de forma consistente e continuada em um projeto comum. O festival Ponto CE torna-se esse ano mais um parceiro nessa ação de difusão. Além dos espetáculos propriamente ditos, vários municípios receberão cursos e oficinas ministrados por artistas e especialistas convidados.
Nesses 15 anos, muitos foram os artistas que se apresentaram na Bienal de Dança, contribuindo com seus gestos dançantes para povoar nossos corpos e pensamentos. Marcas e vestígios desses atos não cessam de reverberar. Nossos olhares, nossas corporeidades, nossas danças seguramente trazem algo disso em suas constituições. Relidos, reescritos, reinventados, muitos desses traços vão seguir adiante como indícios do que ao longo desses anos foi experienciado. Para nós que fazemos a Bienal, pensar repertórios e transmissão nesse momento significa refletir sobre aquilo que nos constitui enquanto artistas da dança, assim como homenagear todos aqueles que, no decorrer dos últimos 15 anos, nos presentearam com suas histórias de corpo, de dança, de vida.
Ernesto Gadelha e David Linhares